Investir em ações com selo de alta governança corporativa não é garantia de ausência de riscos societários, mesmo no Novo Mercado da Bovespa. Por mais que especialistas e reguladores se esforcem para mitigar problemas, a dinâmica do mercado e a complexidade das operações têm desafiado os investidores. A maior polêmica já vista até agora é a reestruturação anunciada recentemente pela Cosan, que prevê a criação de classes distintas de ações votantes.
Este porém não é o único caso de empresa listada no Novo Mercado que desagradou acionistas e tornou-se alvo de críticas. Profissionais citam outros episódios de companhias desse grupo, como Nossa Caixa, Grendene e Perdigão, que acabam trazendo de volta a discussão sobre até que ponto o aplicador em companhias do mais criterioso segmento de governança corporativa da Bovespa está protegido. Vale lembrar que tais ativos custam mais caro no mercado, justamente pela perspectiva de tratamento equânime aos acionistas.
A Cosan anunciou, em 25 de junho, uma reorganização que culminará na criação de uma holding sediada nas Bermudas, cujos papéis serão listados em Nova York (EUA). No Brasil, as negociações ocorrerão por meio de BDRs. A discussão central é que esta empresa terá duas classes distintas de ações ordinárias, com poderes de voto diferenciados: a ONA será distribuída ao mercado permitirá um voto, enquanto a ONB ficará nas mãos do controlador, Rubens Ometto, e dará direito a 10 votos.
O mercado não gostou da novidade e penalizou fortemente as ações. A companhia estreou na Bovespa ao final de 2005, captando quase R$ 900 milhões. As ações subiram 125% entre o dia de estréia, 18 de novembro, e 22 de junho deste ano, um pregão antes do aviso de reestruturação. No mesmo período, o Ibovespa avançou 80%. Entretanto, após o anúncio, as ações despencaram durante três pregões seguidos, com perda total de 14%, ante queda de apenas 0,2% do Ibovespa.
Em período de silêncio, a companhia se limitou a ler um texto ao mercado para explicar diversos questionamentos, no último dia 5 de julho. Nele, o diretor Vice-Presidente Financeiro e de Relações com Investidores da Cosan, Paulo Diniz, esclareceu que em qualquer votação de assuntos de interesse dos acionistas minoritários, as ações ON classe B, de posse do controlador, valerão apenas um voto. Segundo o comunicado, esse é um dos aspectos que desmentem a crítica de que os papéis ONA, que estarão nas mãos dos demais acionistas, serão de uma classe inferior às ações ONB.
“Uma das certezas que o investidor tinha quando comprava uma ação do Novo Mercado era a isonomia no direito de voto. Essa segurança se perdeu após a operação a Cosan”, comenta Reginaldo Alexandre, analista de investimentos da Advalorem. “É razoável imaginar que, no futuro, o mercado pagará menos pelas companhias listadas nesse segmento, pois não está mais seguro quanto a seu retorno.” Para ele, outra conseqüência é a chance de se abrir um precedente. “Se uma reestruturação desse tipo passar, outras também podem acontecer.”
O especialista não acredita, no entanto, que o episódio tire a credibilidade do Novo Mercado. “A exigência de mais transparência e vantagens como a do free float mínimo continuam”, disse. “O Novo Mercado cumpre seu papel. Mas o caso Cosan é uma situação nova, que não foi levada em conta quando as regras foram criadas. Precisamos discutir mudanças nessas normas.”
Para a estrategista da Fator Corretora, Lika Takahashi, o Novo Mercado não traz proteção para tudo, mas melhora as expectativas dos investidores em relação às empresas negociadas. “O caso da Cosan não tira o mérito das outras companhias participantes, mas reforça o fato de não haver proteção total.”
Questionado sobre o assunto, o superintendente executivo de Relações com Empresas da Bovespa, João Batista Fraga, lembrou que o segmento diferenciado oferece a câmara de arbitragem, um foro criado para resolver disputas societárias e demais questões de mercado. “Além disso, há uma série de exigências de transparência e informações que as empresas devem prestar.”No caso Cosan, ele admite que não existe o “melhor dos mundos”. “O investidor não conseguirá ir para a nova empresa, nas Bermudas, e continuar no Novo Mercado.” Mas lembra que, se a companhia decidir se deslistar, terá de fazer uma oferta aos minoritários pelo valor econômico, com pagamento em dinheiro.
Precedentes – Outros casos geraram mal estar entre investidores no Novo Mercado. Os três principais ocorreram com Nossa Caixa, Grendene e Perdigão, segundo analistas. Na Nossa Caixa, o banco anunciou em março deste ano a compra da folha de pagamento dos servidores do Estado de São Paulo, por R$ 2,084 bilhões. A expectativa dos investidores era de que as contas dos funcionários passassem para o banco estadual sem custos.
Os papéis da instituição, que já caíam desde fevereiro, aprofundaram as perdas e chegaram a ser cotados abaixo do preço da oferta pública inicial de ações do banco, em outubro de 2005. Na ocasião, o governo de São Paulo obteve R$ 31,00 por ação. Por e-mail, o banco diz que respeitou rigorosamente os princípios do Novo Mercado na operação.
“Em momento algum, a Nossa Caixa omitiu que estivesse negociando a compra desse ativo do Estado e, com transparência, observando as boas práticas de governança corporativa, comunicou o Fato Relevante à Comissão de Valores Mobiliários; divulgou a transação no site do banco na data da assinatura do contrato (27 de março) e publicou, no dia seguinte, o mesmo Fato Relevante em jornal”, afirma.A instituição diz ainda que a decisão estratégica adotada teve amparo legal, econômico e financeiro e tornou-se imprescindível diante das resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) que, no ano passado, instituíram a “conta-salário”.
A Nossa Caixa afirma também que realizou teleconferência com o mercado para esclarecer dúvidas. “Repetiu-se, ainda, na teleconferência, que a decisão do Conselho de Administração contou com o voto favorável do conselheiro representante dos acionistas minoritários”, complementa.
“Os acionistas minoritários e o próprio Estado de São Paulo, controlador do banco e detentor de 71,25% do capital social da Nossa Caixa, teriam, de fato, sido lesados caso o contrato não fosse firmado. O banco investiu pesado ao longo de 2006, para receber 590 mil novos clientes este ano. Não se empenhar em reter e conquistar a fidelidade desses clientes representaria, sim, uma dupla perda para a Nossa Caixa e seus acionistas”, diz.
A Grendene também passou por forte correção em Bolsa, em 2005. As ações ordinárias da empresa foram negociadas no final de março daquele ano no menor valor atingido desde a estréia, quando custavam R$ 37,45. Os papéis reagiram ao lucro divulgado pela empresa referente a 2004, com queda de 66,7%, para R$ 67,654 milhões, na comparação com 2003.
O mercado já estava de mau humor com o papel desde o anúncio do balanço do terceiro trimestre de 2004. Segundo analistas, a Grendene não preparou os investidores para a piora no desempenho ao fazer reuniões de apresentação durante processo de abertura de capital, mas passou uma avaliação de que seus resultados manteriam os níveis apresentados no ano anterior. Consultada, a Grendene preferiu não se pronunciar.
Perdigão também foi criticada pelos profissionais do mercado, quando recebeu uma oferta hostil da Sadia por seu controle, em meados de julho de 2006. Investidores de peso da companhia, que tem controle difuso, rejeitaram a proposta. Para alguns analistas, a empresa deveria ter convocado uma assembléia e aberto o poder de decisão para todos os acionistas.
A gerente de Relações com Investidores da empresa, Edina Biava, rebate a informação dizendo que a empresa seguiu exatamente o disposto em seu estatuto ao negar a oferta da Sadia. “Do nosso free float, 64% está com acionistas estrangeiros, que são os mais exigentes em termos de governança corporativa”, disse. “O que fizemos foi proteger nossos investidores, e tivemos voto de louvor deles.” De acordo com ela, a atitude da empresa não gerou nenhuma reclamação na Bovespa ou mesmo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
À época da oferta, o presidente da Perdigão, Nildemar Secches, citou o artigo 37 do estatuto da empresa para rejeitar a oferta da Sadia. O artigo diz: “Qualquer Acionista Adquirente, que adquira ou se torne titular de ações de emissão da Companhia, em quantidade igual ou superior a 20% (vinte por cento) do total de ações de emissão da Companhia deverá, no prazo máximo de 30 (trinta) dias a contar da data de aquisição ou do evento que resultou na titularidade de ações em quantidade igual ou superior a 20% (vinte por cento) do total de ações de emissão da Companhia, realizar ou solicitar o registro de, conforme o caso, uma OPA da totalidade das ações de emissão da Companhia, observando-se o disposto na regulamentação aplicável da CVM, os regulamentos da Bovespa e os termos deste Artigo”.
A Perdigão interpreta que a oferta pela totalidade das ações só se aplica se o comprador já for acionista da empresa, e não para um investidor de fora, caso da Sadia. Quase todas as empresas que estrearam na Bovespa nos últimos anos estão ingressando diretamente no Novo Mercado. Com a entrada da Redecard, na última sexta-feira, já são 72 companhias neste segmento. (Aline Cury Zampieri)