O Novo Mercado surgiu com o propósito de corrigir distorções que o mercado apresentava antes de sua criação. Dentre os problemas, talvez o mais grave fosse o predomínio, entre as companhias brasileiras de estruturas onde as ações preferenciais – sem voto, sem voz, sem direito a venda conjunta (tag along) em caso de alienação do controle da companhia e carente ainda de outros direitos – perfaziam até dois terços do capital total, que era o limite legal para emissão dessa classe de ações até a mais recente reforma da Lei das SA, em 2001.
Era comum encontrar situações em que o controlador detinha o comando da companhia com pouco mais de um sexto de seu capital ou até menos, através de estruturas piramidais, em que a participação do controlador na companhia A era detida pela empresa B, a qual o controlador comandava sem deter todas as ações.
As empresas raramente, no passado, vinham a mercado com estruturas de capital diferentes dessa. O compromisso com a massa de acionistas não controladores, detentores de ações preferenciais, era mínimo. Mas modificações importantes, trazidas pelo desenvolvimento do mercado, foram paulatinamente mudando esse quadro. A presença do investidor estrangeiro, com demandas de maior rigor, aumentou. As várias categorias de investidores locais, escaldados pelos dissabores do passado, se sofisticaram e passaram a ser potentes agentes de mudança. A legislação, seguindo esse movimento, passou por avanços notáveis.
O ponto culminante desse processo foi a criação do Novo Mercado, no qual as companhias se comprometem, voluntariamente, com a adoção de práticas de governança corporativa adicionais em relação ao exigido pela legislação.
O Novo Mercado impõe muitas exigências para garantir transparência, mas a principal inovação é a exigência de que o capital social da companhia seja composto somente por ações ordinárias.
Não é à-toa que os investidores vêm deixando de aceitar, salvo condições muito excepcionais, ações que não estejam sob abrigo do Novo Mercado ou, pelo menos, de seus níveis de acesso. Isto é particularmente verdadeiro em relação às companhias que estréiam em bolsa. O ‘boom’ de emissões dos últimos anos não ocorreria sem que houvesse o Novo Mercado.
Uma operação anunciada recentemente pela Cosan, no entanto, preocupa pelo ‘passo para trás’ que sua finalização poderá representar em relação ao Novo Mercado, atingindo em cheio (ainda que indiretamente) o principal pilar que orientou sua criação: o princípio de que a cada ação deve corresponder um voto.
Os controladores da Cosan pretendem fazer uma ampla reorganização da companhia em três etapas. A primeira será uma oferta global da Cosan Limited, que submeterá à Securities and Exchange Commission (SEC) o registro da oferta pública de ações classe ‘A’ de sua emissão nos Estados Unidos (em montante a ser ainda definido) com pedido de listagem na Bolsa de Nova York. A Cosan Limited também solicitará pedido de registro de programa de Brazilian Depositary Receipts Nível III (BDR), representativos de ações ordinárias classe ‘A’ que serão ofertados na bolsa brasileira.
A Cosan Limited foi constituída em Bermuda, em 30 de abril último, e seu capital será dividido em ações ordinárias classes ‘A’ e ‘B’. As ações ordinárias classe ‘A’ e os BDRs representativos das mesmas serão oferecidos aos investidores. As ações classe ‘B’ serão subscritas pelos controladores da Cosan.
As ações classe ‘A’ e ‘B’ da Cosan Limited terão, em linhas gerais, os mesmos direitos de que gozam atualmente as ações da Cosan, incluindo tag along. Mas, enquanto a cada ação classe ‘A’ corresponderá um voto, a cada ação classe ‘B’ corresponderão dez votos. E aí é que reside o problema. Após a liquidação da oferta global, e condicionada à sua conclusão, a Cosan Limited pretende lançar uma oferta pública (OPA) voluntária dirigida aos acionistas minoritários da Cosan no Brasil e nos Estados Unidos, com o fim de permitir que os atuais acionistas da Cosan permutem suas ações por ações ordinárias classe ‘A’ do capital da Cosan Limited ou de BDR representativos das mesmas.
A relação de troca deverá ser de um por um, sujeita a ajustes, em razão de eventual caixa líquido existente em cada uma das empresas. A eventual migração causará, evidentemente, significativa diluição do poder de voto ao atual acionista, mas a alternativa de permanecer na Cosan poderá não ser muito mais alentadora, em vista de potenciais conflitos de interesse entre as duas companhias e seus acionistas. Talvez essa situação conduza o atual acionista da Cosan a pensar e a agir segundo a velha máxima de que é mais seguro estar no mesmo veículo em que esteja o controlador, no caso, a Cosan Limited.
Por falar em máximas, cabe lembrar aqui o velho dito popular de que ‘por onde passa um boi, passa uma boiada’. Parece ser este o quadro que essa operação sugere em relação ao Novo Mercado. Não se questiona a legalidade da operação. A questão central é o rompimento do que foi o motor de criação do Novo Mercado: o princípio da isonomia de voto. Neste sentido, a transação da Cosan poderá representar não um avanço, mas um retrocesso para o mercado brasileiro.